quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Relatos de Um Possível Morto

E aí quando atendi ao telefone, a voz cavernosa dizia que queria falar com a pessoa responsável por... hã!?... queria falar com a pessoa responsável por mim.
(Eu já saí da casa de mamãe faz tempo, pô!)
"Quem deseja falar?"
"É o senhor o responsável?"
Obviamente! Depois da maioridade, acho que já sou responsável por mim.
"Sim, senhor, sou eu. Quem é o senhor e o que deseja?"
"Me desculpe dar uma notícia dessas a esta hora da manhã, mas, são ossos do ofício. Óbito, senhor. Preciso que o senhor venha reconhecer o corpo."
Fiquei parado, sem voz, decerto, gelado. Pedi pra que ele repetisse o nome para ver se era de mim mesmo que ele estava falando. Tendo o cavernoso confirmado, pedi uma breve descrição só pra me certificar que não se tratava de homônimo. Pasmei mais ainda: ele me descreveu inacreditavelmente e a roupa era exatamente como a que eu vestia.
"Tu...tudo bem, senhor, estou indo 'praí'."
O primeiro pensamento que tive após a ligação foi: "Putaquipariu, morri!! E nem tiveram a decência de me avisar!"
E aquela ligação do cavernoso não era um aviso? Era o quê então? Um convite pra ir ao cinema?
Mas, 'peraí' se eu sou o morto porque eu atendi ao telefone?
E a dúvida começou a me corroer. Não sabia se estava vivo, morto ou nenhum dos dois, quiçá os dois. Sabia que não estava bem, aquela ligação mexeu comigo.
Eu me beliscava, mordia, cheguei ao ponto de sair correndo pra bater com o dedinho no pé da mesa da cozinha. Dor eu sentia. Isso é um bom sinal.
Será que os mortos sentem dor?
Passei o resto da tarde armando armadilhas pra mim mesmo, só pra me certificar que estava vivo... ou morto... Dúvida cruel.
Decidi tocar a vid... bom, que seja a morte, decidi tocar a morte.
Peguei as fotos na gaveta, olhei uma por uma com aquele ar nostálgico de quem se despede. Sorri vendo algumas, com outras chorei copiosamente e algumas eu rasguei. Ah, umas duas ou três toquei fogo pra ninguém nunca mais ter aquelas lembranças. Seria muito invasivo alguém rever aquilo.
Ouvi as músicas que mais gosto e senti uma vontade de tocar violão, coisa que nunca consegui em toda minha vida. Era uma frustração pra mim nunca ter ido além do bom e velho Come As You Are, que todo mundo que não toca consegue fazer.
Peguei um cigarro, mas, guardei-o de novo. Já passava da hora de parar de fumar.
Abri o armário pra escolher uma camisa bonita pra pôr no defunto. Sem terno. Morto de terno é coisa de velho. Opa, mas, quem vai vestir o defunto, já que ele era eu? Enfim, escolhi uma camisa bacana, uma calça jeans meio gasta, mas, que eu adoro. É bom chegar do outro lado e causar uma boa impressão. Mas, se eu já morri, já estou do outro lado.
Putaquipariu de novo! E se o outro lado for esse?
Vou passar quanto tempo aqui, enfurnado e morto no meu próprio quarto?
Guardei a velha calça, melhor que ela viva com outras pernas do que ficarem longe de mim, estragando debaixo da terra.
Mais e mais dúvidas surgiam, todos os tipos de dúvidas. Tanto que fiquei nauseado... vomitei horrores e fui me deitar um pouco.
Quando deitei, mais um pensamento idiota (mas, que faz sentido): por que deitar se eu vou passar o resto do "daquiprafrente" deitado? Fechei os olhos e cochilei.
(...)
Era mais de sete da noite quando eu me levantei e fui ao IML.
Chegando lá, me identifiquei com um nome falso e perguntei pelo meu próprio nome. O velho de voz cavernosa me disse pra esperar (era o mesmo do telefone, não tinha como não reconhecer aquela voz).
"O senhor está preparado? Tem alguma doença cardíaca? Intolerância a sangue e outros cheiros comuns a um necrotério?"
"Não, senhor, estou pronto."
"Venha por aqui."
E eu entrei na sala dos cadáveres.

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