terça-feira, 13 de abril de 2021

Terno Branco e Vermelho

Rio de Janeiro, década de 40.
Ele, um menino pobre, preto, criado pela avó após a morte da mãe. O pai o abandonou ainda nos primeiros meses de vida. A avó, devota de São Benedito, benzedeira, de vez em quando “baixava um santo em casa” para atender à comunidade. Se dizia católica apostólica romana, apesar das práticas condenadas pelo padre da comunidade. Com escassez de quase tudo, viviam felizes, com um velho cachorro.
Ela, uma menina pobre, branca, criada pelos pais junto de mais um casal de irmãos. É uma família de pequenos burgueses em decadência. Todos católicos fervorosos, daqueles que andam de terço pendurado no pescoço, inclusive a mãe que, vez ou outra recorria à velha benzedeira, suas rezas, velas e simpatias. O pai alcoólatra foi o motivo da queda nos negócios da família e sua mudança para o subúrbio, durante a infância da moça.
Rapaz e moça eram vizinhos de bairro, moravam em ruas diferentes, mas, que eram paralelas.
Se conheceram na infância, entretanto, só se aproximaram e se tornaram amigos no início da adolescência, num grupo de jovens promovido pela igreja católica do bairro. Ela frequentava para manter as tradições familiares e sonhava com o dia de seu casamento, de branco, véu, grinalda e tudo mais. Ele, que não perdia uma boca livre, ia só para comer os bolos com suco de caju, que eram servidos no grupo aos participantes. Gostava mesmo era da macumba de sua vó, ali se sentia em casa. Conhecia as lendas dos orixás, as cores das velas, as rezas, os preceitos, o cambono perfeito. Impulsivo como todo filho de Ogum, não tinha medo de nada.
E foi nesta época que se apaixonaram. Romance obviamente proibido. Como a filha branca de um pai “ex-rico” ia se envolver com o negrinho neto da velha macumbeira? Já que não podia ser aceito, faziam escondido. Se encontravam várias vezes durante a semana para namorar. Em quaisquer lugares. Viviam um romance adolescente tórrido. Ela dizia que guardaria sua virgindade para o dia em que ele tivesse fundos e pudesse pedir sua mão seguindo os ditames da tradição.
No dia em que completou 16 anos, a moça estava ansiosa por um presente prometido por seu pai, até que um visitante chegou à sua casa. Ele trazia uma pequena caixa nas mãos. 
Era um velho caixeiro-viajante, amigo de seu pai (da mesma idade que ele, inclusive). Homem rude, escroto, sujo, asqueroso, sem modos, grosseiro, rústico. Este era o seu presente: um velho como marido. Na caixinha? Uma aliança de compromisso para pedir-lhe a mão em casamento.
Chorou por horas e fugiu para encontrar o rapaz. Contou-lhe toda a história e choraram juntos. Se beijaram e se despediram. Era hora de preparar-se para se tornar uma mulher casada, dona de casa, quiçá, mãe de muitos filhos. Filhos. Coisa praticamente impossível, já que o marido além de “disfuncional”, não era fértil. Ele fora casado com uma mulher que já era falecida (sorte dela!) e não teve frutos por “problemas” dele adquiridos na infância.
Enfim, não demorou muito para marcarem o casamento e consumá-lo. Logo, se mudaram para Minas Gerais e lá ficaram por cerca de 4 anos. Mal se teve notícias da moça que, pelo que se sabe, passava dias em total solidão enquanto o marido viajava a trabalho. Em alguns dias só chorava, em outros tricotava e cantava ao som de alguns passarinhos, tão presos quanto ela, pelo mesmo algoz.
O jovem rapaz, 2 anos mais velho que ela, até então, inocente, infantil, doce, nestes 4 anos de distância tornou-se um homem. Um típico malandro, rápido, esperto, liso, amado e amante de muitas mulheres. Desfez-se o menino de roupas encardidas, doadas por outrem e entrou em cena um homem elegante, sempre bem alinhado. Ternos quase sempre brancos, mas, sempre claros, chapéu Panamá na cabeça, sapato Mocassim bicolor, cigarro num bolso, navalha e baralho no outro. Quase nunca tinha dinheiro, mas, sempre dava “seus pulos” para conseguir algum.
Após 4 anos de saudade e muito chororô, ela convenceu o marido de voltarem ao Rio, para que não se sentisse tão só. Ele avisou que sua irmã solteirona iria junto e moraria bem próximo, para ficar de olho na moça. Voltaram. A irmã instalou-se na esquina, quase na frente da casa do casal.
E as notícias correm como um pé-de-vento, logo, a vizinhança toda já sabia do retorno do casal. Estranharam a falta de herdeiros, mas, a moça fora responsabilizada pela esterilidade.
O coração de menino do nosso bom malandro quase saiu pela boca quando soube. Preparou seu terno mais bonito para passar em frente à casa dela e ver se conseguia encontrá-la “por acaso”. E o seu “acaso” deu certo. 
Encontraram-se! Não podiam se abraçar ou se beijar, mas, o fizeram com os olhos. Mesmo seguindo em direções opostas, seus olhares continuaram abraçados, entrelaçados.
O marido dela continuava passando grandes temporadas fora de casa, em viagem, e essa foi a deixa para o bom malandro ir ganhando espaço. Não demorou muito para ter encontros calientes com a moça, na casa dela. Entrava escondido, pelos fundos, para que a cunhada-vizinha-fofoqueira não o flagrasse.
A primeira noite do casal foi a mais esperada, já que a moça ainda era donzela, mesmo casada, seu marido nunca conseguiu consumar o ato. E eles se amaram ardentemente. Passaram duas noites em claro se amando e se amando e se amando.
Quando o marido voltava até estranhava a alegria que pairava no rosto dela, mas, achava que era o contato da família que lhe fazia bem. E assim foram seguindo a vida, se amando às escondidas (se bem que, a esta altura do campeonato, por toda a vila já corria um boato do adultério) e o marido traído sendo patrocinador de tudo.
A moça passou a sair para a vida noturna ao lado do rapaz, ficavam em rodas de samba, jogo e bebedeira. Totalmente ao contrário do que a família imaginava. Ela não perdia a missa das 7h de domingo, mesmo que chegasse da boemia às 6h. Tinha que manter as aparências, embora muitos desconfiassem de sua amizade recente com certas pessoas da vila.
Janeiro estava chegando ao fim e o carnaval se aproximava, o marido avisara que viajaria durante o carnaval. Ela marcou com o rapaz de passarem o carnaval juntos e fugir na quarta-feira de cinzas depois da missa.
Chegou a sexta-feira de carnaval e o marido saiu cedo, apressado, mal se despediu.
Ela passou o dia ansiosa, no fim da tarde, foi se preparar para se encontrar com o seu amor. Estava decidida a mudar de vida a partir daquela quaresma. Tomou banho, lavou os cabelos quase que fio a fio, escolheu seu vestido mais bonito. Perfumou-se e esperou a hora de sair para a boemia de carnaval.
Ele já havia mandado lavar seu terno branco, seu preferido, com uma grana obtida num jogo com um mané qualquer. Na volta da lavanderia, tinha que passar por uma viela que, mesmo de dia, era estranha e escura. Lá foi ele, filho de Ogum que não tem medo de nada. Passou e sentiu um bafo de charuto em sua nuca. Ouviu uma gargalhada. Era Exu. Ele veio avisar que se não tomasse cuidado, essa malandragem, essa esbórnia toda ia acabar em sangue e sem glória.
O susto do princípio deu lugar a um clima de amizade, parceria antiga. Ele olhou pra Exu, que lhe deu um gole de marafo, sorriu, tirou sua guia de proteção e guardou no bolso. Disse que aquele era o seu dia e estaria bem protegido, inclusive pelo próprio Exu que lhe advertiu. Quem avisa amigo é.
Botou seu Panamá, seu Mocassim, seu cigarro, deixou a navalha e o baralho em casa- não era dia desse tipo de trabalho. Borrifou-se todo o seu perfume barato e saiu. Todas as suas ex-amantes que o encontraram pela rua praguejaram e rogaram mil maldições só porque ele havia deixado todas para ficar com a “santinha sem graça”. E assim foi. Escolhas. Elas que lidem com a dele.
Foi pra casa da moça. Passaram o final de semana todo juntos, discretamente. Quase que transavam em silêncio, tipo amorzinho mesmo. E a terça-feira gorda seria o melhor dia. Foram pra gafieira, dançaram, cantaram, comeram, beberam, tudo patrocinado pelo traído. Voltaram para a casa dela e transaram. Da melhor forma que poderiam. 
Até os sussurros podiam ser ouvidos à distância. Era a deixa perfeita para que o marido chegasse. Sim! Ele viajou sim, mas, chegou bem antes e ficou escondido na casa da irmã à espreita do casal de adúlteros.
O rapaz tinha o hábito de fumar e o péssimo hábito de fumar depois de transar pelado sentado na janela. 
Seu terno branco estava sobre a cadeira, debaixo da janela, por isso, ele subiu com muito cuidado para não sujar, nem derrubar cinzas nele. Sentou-se na janela, semiaberta e acendeu o cigarro. Ela, nua, olhava-o com ternura, da cama. O quarto cheirava a amor, a sexo, a perfume barato, a encrenca.
Do lado de fora, pertinho do muro, que era um pouco baixo, estava plantado o marido traído. Escolheu o momento certo, metade do cigarro e meteu no rapaz uma “azeitona de fogo” pelas costas, mas, que acertou direto no coração. Um tiro bem dado e certeiro. Morte instantânea. O vermelho do sangue que jorrava juntou-se ao branco do terno. A moça nem conseguiu chorar ou correr ou se vestir. Paralisou.
O marido teve a sua honra lavada com sangue. Tinha dinheiro e fez o que queria. Matou o preto alegando tentativa de abuso à honra de sua esposa, embora todos já soubessem do caso extraconjugal e da falta de desempenho do velho. Essa morte ficou por isso mesmo. Ele fora enterrado como indigente numa vala comum, já que sua avó se encontrava debilitada e partiu poucos dias depois dele. Mulheres choraram e outros malandros beberam em sua memória, mas, seu nome virou apenas lenda. A lenda do malandro que de tão esperto morreu sem glória.
Em pouco tempo a barriga da moça começou a ter sintomas estranhos, além da total apatia que lhe abateu. A cunhada a levou ao médico e confirmou: gravidez. Ela estava grávida do malandro falecido.
Assim que chegou de viagem, o marido pegou a mulher, enfiou-a numa carro e voltaram para Minas Gerais. Ela não conseguiu nem se despedir de seus familiares. Lá chegando, deu-lhe uma surra, tão grande, tão terrível que ela perdeu o bebê que esperava. 
Depois disso ficou acamada por alguns anos e cada vez mais fraca, mais fraca, mais fraca. Sua cunhada cuidava dela, apesar de tudo. Ela não conseguia mais comer nada sólido, pois seu sistema digestivo estava destruído, tal qual seus dentes. O marido rezava para que morresse logo e lhe desse sossego. Ela também rezava para partir logo, com as forças que restavam para falar, ela só repetia ao homem “Assassino! Assassino!”. 
Na noite anterior, ela olhou para a janela de seu quarto e pediu para que a cunhada abrisse. E ali ela viu seu amado malandro sentado, agora vestido com seu terno branco com um cravo vermelho no bolso, sorrindo para ela.
Ele disse a ela que aguardasse, pois na próxima vida eles iriam se encontrar de novo e a vida haveria de ser o que não pode ser naquela. Disse que a espiritualidade renagada por ele seria o fio condutor para o próximo encontro. Ele lhe jurou amor, por todas as vidas que mais houvesse.
Ela sorriu singelamente. Exu bateu nas costas do malandro e eles desapareceram. Ela deu um suspiro e ouviu atabaques tocando bem longe. Fez sua prece da noite e pediu outra vez para que Deus a levasse.
Suas preces foram atendidas e naquela manhã de outono, ela não mais acordou.
Acordou, quem sabe noutra vida e a essa hora, pode ser até que os dois já tenham se reencontrado, tenham filhos, se amem livremente como não puderam outrora. E assim, termina esta tragédia brasileira, suburbana, numa quarta-feira de cinzas, depois da missa. Amém.

segunda-feira, 15 de março de 2021

Pra Tua Festa, Não Me Covid

Bom dia, seu otário
Tá com saudade do rolê,
Mas, não se importa se vai ter
O seu próximo aniversário.
Se fosse só você
Furar a pandemia e só morrer
Aí tudo bem
Você teve autonomia pra escolher
E essa sua egoísta covardia
Mata tua mãe, meu pai e a outra tia.
Diz que tem saudade do rolê
Mas, desde quando? Cê tem certeza?
Vi você dançando com um copo de cerveja.
Cheio de amigos sem máscara
Porque está claro pra quem viu
Um otário, solitário, querendo ser aceito
E tua máscara caiu.
Os leitos estão lotados
E você pode ter dinheiro pra comprar a cloroquina
Pense: se tua mãe pegar corona,
Vai morrer na fila, na esquina.
Um vírus pelos corpos
Um verme no poder
Quase 300 mil mortos
E você sorrindo, bebendo no rolê
E você é a bactéria do sistema
Transmissor da ignorância
"Se eu pegar não tem problema"
Olha o tamanho da arrogância
Você me dá ânsia!
Saudade de aglomerar,
Vontade de morrer
Vontade de matar
Não se posiciona claramente
Tem uma reputação a zelar
Mas, já sei quem é, de fato
E sei de que lado está
Nega a dor dos outros
E se acha especial
Seu egoísmo é grosseiro
Não está tudo normal.
No fim das contas, eu só acho
Que só tem uma explicação
Se esforça para ser quem não é
Para curar as feridas de um abandonado coração
Marcas de um passado repleto de rejeição
Não tem nada a perder, desafia a morte
Triste fim, gole de cerveja
Para espantar a solidão
Gole de covid
E você continua parado, caído,
Bem no seu velho lugar
O chão.