sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Visita Inesperada

Naquela manhã, por volta das seis e meia, ela olhou-se no espelho e sentiu-se velha.
Era a primeira vez que lhe ocorriam tais pensamentos. Depois da conversa do dia anterior, acordou com essas coisas na cabeça.
Ficou um tempo esticando e enrugando a pele do rosto, fazendo mil e uma caretas. Parecia querer se convencer que estava velha, gasta.
Levantou o queixo e observou seu pescoço. Deu umas puxadas na pele e lavou o rosto com um sabonete neutro que estava lá, pela metade.
Enquanto enxaguava o rosto, olhou suas mãos. As palmas e as costas das mãos.
Olhou atentamente cada unha. Algumas com um esmalte desgastado, outras meio roídas num nervoso qualquer. Qualquer não! Ela ficou brava feito o cão. E riu, ao lembrar da bobagem que a tirara do sério. Viu que realmente era uma bobagem.
"Ai, como eu sou boba, às vezes."
Pensou até em se desculpar, mas, já era tarde.
"Nunca é tarde." disse. Mas, dessa vez, era tarde. Só ela que não sabia.
Escovou os dentes. Gargarejou. Sorriu pra ver se estava tudo bem.
Voltou ao quarto, pegou duas toalhas: uma para o corpo e outra para os cabelos.
A roupa já estava separada, só não sabia onde estava sua bolsa.
Entrou no banho e desafinadamente, molhou umas sete canções que gostava até desligar o registro da água. Ufa!
"Nossa, já são quase oito horas!"
Começou uma dança frenética pelos cômodos da casa, saiu à procura de tantas coisas que até se esquecia do que estava procurando.
Oito e quarenta e dois. Pronta! Banho tomado, cabelo arrumado(cabelo arrumado= chapinha feita com sucesso!), maquiagem feita. Unhas... putz! Que droga de unhas! Roupa impecável. Estava linda... e velha. Saiu pra rua com esse pensamento.
Antes de chegar no ponto de ônibus, duas quadras e meia dali, se lembrou da bolsa.
Toc-toc-toc-toc-toc, num ritmo acelerado, desfez-se em mais uma dança: corrida de salto alto até sua casa.
O cabelo de lindo, passou a ligeiramente bagunçado e no portão da casa já era um verdadeiro "fuá". A maquiagem escorria e ela já estava a cara de um animal qualquer em extinção. E pior: sentia-se velha, às nove e dezessete daquela manhã ensolarada de inverno (sim, os invernos de São Paulo, são sempre quentes).
Ah, a bolsa. Pegou-a e antes de tentar sair novamente, olhou-se no espelho.
Deu um grito. Quase caiu pra trás quando viu a sua superprodução desmoronada.
Era uma bela mulher, linda mesmo. Só ela não acreditava, já que estava velha.
Mas, de fato estava complexa a sua situação.
Tocou o celular.
"Alô! Quem é?"
Ouviu uma respiração quase tão ofegante quanto a sua na hora do corre-corre. E nada de alguém responder.
Pensou alto um palavrão. Um palavrãozinho de nada, sabe daqueles que a gente solta quando está atrasada e toda bagunçada? Ah, esqueci de citar... e na TPM!
Do outro lado da linha, o alguém segurou o riso e ouviu mais algumas dúzias de palavrões. (Alguns que nem sabia que existiam!)
Ela estava descabelada, com a maquiagem borrada, atrasada e puta da vida, e aí tocou a campainha.
"Quem será o infeliz*?"

*infeliz= pra não botar meia dúzia de palavras de baixo calão.

Olhou pela fresta da cortina.
Uma das suas sombrancelhas se levantou e a boca ficou ligeiramente aberta. Não acreditava no que via. Passou a mão pelos cabelos, desgrenhados, e tentou dar um jeito... em vão.
"Peraí!"
Lavou o rosto novamente com aquele velho sabonete, pra tirar a cara de urso panda que havia se estabelecido e enxugou na toalha do cabelo. Deu passos rápidos pela sala.
Abriu a porta devagar, como se um movimento brusco qualquer pudesse ter efeitos desastrosos. Desceu os quatro degraus. Nove e cinquenta e cinco.
Aproximou-se do portão e disse com uma voz calma, serena, contrária àquela que proferiu os palavrões:
"Oi."

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Relatos de Um Possível Morto

E aí quando atendi ao telefone, a voz cavernosa dizia que queria falar com a pessoa responsável por... hã!?... queria falar com a pessoa responsável por mim.
(Eu já saí da casa de mamãe faz tempo, pô!)
"Quem deseja falar?"
"É o senhor o responsável?"
Obviamente! Depois da maioridade, acho que já sou responsável por mim.
"Sim, senhor, sou eu. Quem é o senhor e o que deseja?"
"Me desculpe dar uma notícia dessas a esta hora da manhã, mas, são ossos do ofício. Óbito, senhor. Preciso que o senhor venha reconhecer o corpo."
Fiquei parado, sem voz, decerto, gelado. Pedi pra que ele repetisse o nome para ver se era de mim mesmo que ele estava falando. Tendo o cavernoso confirmado, pedi uma breve descrição só pra me certificar que não se tratava de homônimo. Pasmei mais ainda: ele me descreveu inacreditavelmente e a roupa era exatamente como a que eu vestia.
"Tu...tudo bem, senhor, estou indo 'praí'."
O primeiro pensamento que tive após a ligação foi: "Putaquipariu, morri!! E nem tiveram a decência de me avisar!"
E aquela ligação do cavernoso não era um aviso? Era o quê então? Um convite pra ir ao cinema?
Mas, 'peraí' se eu sou o morto porque eu atendi ao telefone?
E a dúvida começou a me corroer. Não sabia se estava vivo, morto ou nenhum dos dois, quiçá os dois. Sabia que não estava bem, aquela ligação mexeu comigo.
Eu me beliscava, mordia, cheguei ao ponto de sair correndo pra bater com o dedinho no pé da mesa da cozinha. Dor eu sentia. Isso é um bom sinal.
Será que os mortos sentem dor?
Passei o resto da tarde armando armadilhas pra mim mesmo, só pra me certificar que estava vivo... ou morto... Dúvida cruel.
Decidi tocar a vid... bom, que seja a morte, decidi tocar a morte.
Peguei as fotos na gaveta, olhei uma por uma com aquele ar nostálgico de quem se despede. Sorri vendo algumas, com outras chorei copiosamente e algumas eu rasguei. Ah, umas duas ou três toquei fogo pra ninguém nunca mais ter aquelas lembranças. Seria muito invasivo alguém rever aquilo.
Ouvi as músicas que mais gosto e senti uma vontade de tocar violão, coisa que nunca consegui em toda minha vida. Era uma frustração pra mim nunca ter ido além do bom e velho Come As You Are, que todo mundo que não toca consegue fazer.
Peguei um cigarro, mas, guardei-o de novo. Já passava da hora de parar de fumar.
Abri o armário pra escolher uma camisa bonita pra pôr no defunto. Sem terno. Morto de terno é coisa de velho. Opa, mas, quem vai vestir o defunto, já que ele era eu? Enfim, escolhi uma camisa bacana, uma calça jeans meio gasta, mas, que eu adoro. É bom chegar do outro lado e causar uma boa impressão. Mas, se eu já morri, já estou do outro lado.
Putaquipariu de novo! E se o outro lado for esse?
Vou passar quanto tempo aqui, enfurnado e morto no meu próprio quarto?
Guardei a velha calça, melhor que ela viva com outras pernas do que ficarem longe de mim, estragando debaixo da terra.
Mais e mais dúvidas surgiam, todos os tipos de dúvidas. Tanto que fiquei nauseado... vomitei horrores e fui me deitar um pouco.
Quando deitei, mais um pensamento idiota (mas, que faz sentido): por que deitar se eu vou passar o resto do "daquiprafrente" deitado? Fechei os olhos e cochilei.
(...)
Era mais de sete da noite quando eu me levantei e fui ao IML.
Chegando lá, me identifiquei com um nome falso e perguntei pelo meu próprio nome. O velho de voz cavernosa me disse pra esperar (era o mesmo do telefone, não tinha como não reconhecer aquela voz).
"O senhor está preparado? Tem alguma doença cardíaca? Intolerância a sangue e outros cheiros comuns a um necrotério?"
"Não, senhor, estou pronto."
"Venha por aqui."
E eu entrei na sala dos cadáveres.

sábado, 25 de agosto de 2012

O Normal e o Maluco

Pessoas normais sofrem
Choram
Caem
E se levantam.
Se esquecem e recomeçam tudo outra vez...

Pessoas malucas sofrem
Choram
Caem
E se levantam.
Mas, aprendem e daí tiram forças
Pra se levantarem quantas vezes for preciso.

Pessoas normais se esforçam
Para o serem
Já disse o Raul.

Pessoas malucas não aceitam a normalidade
E vão aprendendo
Com o tempo, com a vida, com o vento...

Pessoas normais são notadas?
Pessoas malucas são notáveis...

De Repente o Vento Assobiou

De repente, ele ouviu o vento assobiar lá fora e sentiu um calafrio.
Tremeu até os ossos. Os olhos lacrimejaram.
Levantou-se com cuidado e fechou a janela.
Voltou à cama e algo estranho havia acontecido com seu corpo.
Não sabia o quê.
Sentia dores na região das escápulas como se algo rasgasse sua pele e seus ossos.
Como se faltasse coragem até pra respirar, nem tentou descobrir o incômodo. Apenas deitou-se de bruços, buscando dormir.
Já passava das três da manhã quando uma tosse terrível o sacudiu na cama, parecia que seus pulmões iam saltar chão afora. Sentiu um sabor estranho na boca, como se tivesse  comido um passarinho vivo. Não conseguiu abrir os olhos, por mais que tentasse.
Ficou ali digerindo suas dores. E o vento ainda assobiava mais alto.
Abriu os olhos e não enxergava nada além de uma névoa acinzentada.
Ouviu passos na escada. "Enfim, alguém pra me ajudar."

A porta rangeu, abrindo-se.
Um cheiro invadiu o ar, empestiou o quarto. Não sei se cheirava mal mesmo ou eram as circunstâncias que faziam com que cheirasse mal.
"Vim te buscar, vamos."
Houve silêncio, tanto que dava pra ouvir um coração batendo acelerado, feito trote de cavalo assustado.
Respiração forte, soluços, convulsões.
Agarrou-se a qualquer coisa que havia ali, esforçando-se até se colocar de pé, em meio à escuridão acinzentada e ao silêncio ruidoso.
Um tiro. Certeiro. Caiu um corpo no chão e o vento assobiou mais um pouco e  parou.
O tempo parou e se fez amanhecer. Um pássaro cinzento cantou num galho ali perto da janela e o defunto sorriu, como se nada tivesse acontecido.
O pássaro voou e ninguém soube quem morreu, nem quem matou.
Só se sabe que o pássaro voou.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Oportuna Idade

Ele já estava por ali quando ela chegou.
Aliás, não parava de verificar as horas no celular.
Pronto! Ela chegou, estava linda de verde.
Ele tinha penteado o cabelo e até passado perfume.
Ela veio pra cumprimentá-lo com um beijo no rosto e suas mãos tentaram um abraço.
O imbecil estava nervoso demais, esquivou-se do abraço (sendo que era isso o que ele mais queria desde o dia em que marcaram esse encontro na porta do metrô).
Encostaram-se na mureta e começaram a conversar.
Meio distantes um do outro, mas, isso não era problema.
Ela ria e se mostrava afim de ouvir o que ele tinha a dizer.
Ele não tirava as mãos do bolso e ficava olhando pro nada.
Ela se aproximava e ele apoiava uma perna sobre a outra, numa dança nervosa.
Ela olhava nos olhos.
Ele olhava pro nada.
Burro!! Olha nos olhos dela e diz a que veio!

[Quase saquei o violão e ofereci uma canção em nome do tal.
Mas, fiquei ali, de voyeur (não tinha nada pra fazer a não ser esperar)]

E ficaram naquele jogo durante um longo tempo.
Estava dando a hora dela e nada do zé mané tomar uma atitude.
Ela aproximou-se pra se despedir.
Ele tremeu. Sua espinha gelou! É agora!
Olharam-se nos olhos, como não haviam feito ainda.
Os olhos escorreram até a boca.
Ela olhou pra cima
"Ai, vai chover, preciso ir
Até mais."
Deu-lhe um beijo no rosto e a cara dele caiu no chão!
Por que não fez nada?
Perdeu a oportunidade do dia!

(...)

Ela já estava dentro do metrô quando tocou o celular.
"Oi... é... hummm... a gente pode se ver de novo outro dia?"
Ela sorriu e não respondeu.
Desligou na cara do carinha.
Bloqueou ligações daquele número.
Excluiu do Facebook.
E ele com cara de bunda, olhando pro nada ainda.

É, meu amigo, a palavra dita, a flecha lançada e a oportunidade perdida são coisas que não voltam.
De volta à prancheta.


(Baseada numa cena que vi acontecer hoje de tarde na rampa da Estação de Metrô Corinthians-Itaquera, enquanto esperava pra ir tocar. Não estive presente no desfecho, mas, criei este pr'aquele rapaz largar de ser besta!!)
  
Pra ilustrar:

sábado, 18 de agosto de 2012

Paixão do Filho de Chocadeira


O filho de chocadeira não tem coração.
O filho de chocadeira tem uma pena dourada a ostentar
E dá pena do filho de chocadeira por ser tão vulgar.
O filho de chocadeira não tinha mãe
Mas, ainda assim, pra matá-la,
Tirou a máquina da tomada
E jogou-lhe água da privada.
O filho de chocadeira teve filhos (sem chocadeira)
Só pra comê-los vivos
Pra tê-los nas mãos.
O filho de chocadeira ficou rico
E passou a tomar sangue fresco.
O filho de chocadeira despreza os seus.
O filho de chocadeira se acha o próprio deus.
O filho de chocadeira está envelhecendo
E as frangas novas não gostam de galo velho.
O filho de chocadeira está só.
Numa tristeza e amargura que dá dó.
Mas, não tenho dó do filho de chocadeira,
Cada homem escolhe o seu destino, faz as suas escolhas.
O filho de chocadeira está tossindo
Tossindo muito
Tossindo demais
Gosto de sangue na boca
Pingos de sangue na roupa
Jorra sangue dos orifícios do filho de chocadeira
E ele chama sua mãe
E ele clama sua mãe
E ele não reclama com sua mãe.
O filho de chocadeira não tem mãe.
O filho de chocadeira não tem filhos,
Ou é assim que ele sempre fez questão de mostrar.
Morre o filho de chocadeira
Engasgado com seu próprio sangue
Sentado na velha cadeira.
Não houve dinheiro pra salvá-lo da morte.
Não houve franguinhas pra desejarem boa sorte.
Não houve ostentação.
O filho de chocadeira jaz vagando pela escuridão.
Gemendo e chorando por ter se negado a sorrir.
O filho de chocadeira não consegue dormir.
Quer gritar, mas, ninguém vai lhe ouvir.
Sinto pena do filho de chocadeira,
Que morreu sem nem haver sinal de choradeira.