quinta-feira, 28 de março de 2013

Pequenas Tragédias Cotidianas

Morrera de frio numa madrugada de outono há muitos anos, mas, preferiu, se é que era possível preferir, não sair daquele mesmo lugar. Continuou do mesmo jeito, na mesma posição, com o mesmo aspecto durante um longo tempo.
Desencarnou de um lugar onde já não havia carne, eram ossos apenas e uma pele dura. De sol a sol, de pó a pó, de frio a frio.
Em vida, já era um fantasma. Não tinha noção de horas, dias, anos, nome, endereço, família, nada. Não tinha lembranças.
Nos últimos tempos já nem se lembrava como era falar, depois de tantas tentativas, sem sucesso, de ser ouvido.
No início ainda tinha consciência, quando sóbrio. Lembrava-se de onde vinha e porque estava ali. Mas, o tempo foi passando e foi se criando uma consciência flutuante, que servia apenas para os fatos recorrentes em seu dia-a-dia nas ruas.
E um dia resolveu se instalar na esquina de uma rua movimentada, sob a porta de uma velha padaria que não funcionava mais. Ali ficou cumprindo sua pena de vida. Ainda neste tempo a chuva o incomodava.
O papelão que servia de cama, depois de uma chuva que durou quase uma semana, grudou-se em seu corpo. Fixou-se em sua casca. Ele não era negro, nem branco, nem pardo, nem bugre. Era da cor da sujeira. Da cor do chão. Do limbo. Do chorume. Fedia.
Algumas semanas antes de sua passagem teve momentos de lucidez e tentou se levantar. Não conseguiu. Tentou gritar, mas, sua boca sequer abriu. Decidiu que este mundo já não servia para si.
Mas, quem disse que ele poderia decidir algo? Quanto mais sobre si, se ele mesmo já nem existia há tempos. E foi morrendo aos poucos.
O corpo apodrecido pela vida jazia ali aos pés dos transeuntes e ninguém percebeu quando o coração não batia mais. Quem ia se importar? Era só mais um.
O corpo se foi. O que restou ficou por ali, na mesma posição. Sem acreditar em nada, sem querer mudar. Não assombrava, não atormentava, não se encostava em ninguém. Esperava sem esperança, esperava sem esperar.
Diante da ideia que lhe deu na cuca sobre a imortalidade da alma ele riu e disse pra sua própria ideia que aquilo era bobagem. Onde já se viu?!
Quando ouviu sua própria voz, tomou um susto. Resolveu se levantar e saiu caminhando em busca de alguma resposta, em busca de alguma luz.

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